Pecados




Pecados

Celso Naves Esault Jr.


Tic. O som do relógio ressoa sobre o nosso silêncio. Dominante. Possuidor. Tac.
Tic. Meu sorriso faz par à tenebrosidade do chão vermelho que nos cerca. Sobre ele o seu corpo treme e eu não preciso de tempo para saber que não é a falta de sangue que te faz tremer.
Tac. Não preciso de razão para saber que você tem medo. Ou para saber que seu corpo deitado sobre o próprio sangue é algo correto. Ou para manter meu sorriso ao ouvir seu gemido.
Tic. O tempo voa para mim, mas sei que deve estar congelado para você. Sentir que sua dor pode aumentar faz com que meu ódio e sede de vingança sejam saciados.
Tac...
Tic...
Tac...
E você pensou que poderia rejeitar meu amor da maneira que o fez. Achou que poderia rejeitar um sentimento puro da maneira que o meu já foi um dia.
Tic. Ainda recordo o dia em que nos conhecemos. Lembro-me da maneira como nossos corpos envolviam um ao outro, a maneira como permitíamos que a luxúria nos tornasse ébrios e a paixão nos tomasse de maneira que nossos toques entrassem no ritmo de uma balada sensual e inigualável.
Tac. O barulho do relógio se mistura aos ruídos que o seu corpo produz ao se arrastar pelo chão.
Tic. A faca na minha mão escorre e pinga uma gota do seu sangue no veludo do tapete. O barulho ínfimo que faz me transporta ao passado para lembrar aquele dia chuvoso onde você disse que eu era o amor da sua vida.
Tac. O orgulho que até pouco tempo me tomava era indescritível. A maneira como meu peito se inchava ao lembrar que eu era o amor da minha amada. O sorriso que tomava meu rosto todos os dias era um sorriso satisfeito. O sorriso de alguém saciado. O mesmo sorriso que eu exibo essa noite.
Ao longe as badaladas de um sino de igreja cobrem o som do nosso relógio, marcando a sua última meia noite.
-Por... Favor... – Sua voz fraca tenta ferir meu coração. Mas graças a você ele já foi ferido o suficiente para que entre suas batidas sufocadas não haja espaço para condolências, piedade ou misericórdia. Somente a sede, o desejo, a ânsia, a gula, todos clamando por mais sangue no tapete do quarto.
Badaladas soam ao longe. Você tenta tocar meus pés e eu acho graça. Você, inocente, pensa que eu mudaria de ideia agora? Como se eu fosse capaz de tal coisa. Não foi você mesma quem disse que a minha tendência a ficar acomodado, minha preguiça de mudar e meu comportamento monótono foram a morte do nosso relacionamento?
Pois nada mais justo que seja também a causa da sua morte.
A última badalada já soa longe. Aproximo meu corpo do seu e dobro os joelhos para ver seu rosto mais perto. A proximidade torna tudo mais desconfortável. Como se o cheiro do seu sangue não fosse tão bom e as marcas de machucados em seu rosto deixassem de ser tão satisfatórias. Como se o som de seus gemidos não soasse tão bem quanto antes. E o brilho de seu olhar me lembra de como isso começou. A maneira como eu te queria só para mim, mesmo não fazendo esforço algum para isso. A primeira demonstração de esforço real que faço em muito tempo é o planejamento e a execução da sua morte. Lembro que eu queria que você me achasse melhor do que todos. Dia após dia eu piorei e queria todos os pontos positivos dos outros em mim. Ninguém podia ser melhor que eu. Cada mínimo detalhe. Cada minúscula diferença. A minha cobiça, o meu desejo, a minha inveja, foi o que desencadeou nossas primeiras brigas. Minha insistência em ter aquilo pelo que eu não lutava começou a destruição. Mas esse seu jeito despreocupado me fez pensar, mesmo que por pouco tempo, que as coisas melhorariam.
Tic. O som solitário retorna, retornam seus pedidos de perdão. E meu coração permanece petrificado.
Tac. Uma lágrima solitária, um certificado da desistência, que percorre a extensão de seu rosto. Uma lágrima do meu único amor. Da única pessoa que fiz questão de guardar somente para mim. Talvez também isso seja parte do motivo dela ter me deixado. Eu queria que fosse somente minha, que seu sorriso fosse só meu, que somente meus olhos vissem a felicidade nas covinhas do seu sorriso. Mesmo agora eu acredito que você deve ser toda minha. Pode me chamar de mesquinho, sovina, avarento. Isso não muda nada. Nem mesmo o romper dessa pedra em meu peito ao ver seu choro poderá mudar minha resolução.
Tic. O olhar embaça antes mesmo de eu entender o que estou sentindo. Você murmura algo ininteligível e eu não tenho escolha a não ser aproximar meu rosto para te escutar.
Tac...
-Eu... Antes de hoje... ainda amava você.
Tic...
Mentira.
Meu corpo cambaleia para longe. Os seus olhos fecham e sua feição tristonha congela, com as últimas lágrimas marcando sua pele.
Tac. O tempo não para. Meu olhar foca em imagens do passado. Da época em que eu a tinha para mim.
Então me recordo do dia em que seus olhos estavam vermelhos e seus lábios disseram “Não podemos continuar assim”.
Tic.
Lembro-me de procurá-la nos dias seguintes. Da maneira como disse que eu estava forçando as coisas. Que precisávamos de mais tempo separados. Recordo-me da maneira como pensei que ela não queria mais nada comigo porque não era mais minha, que vira em outra pessoa algo que a cobiça já tinha me mostrado, mas que a preguiça não me permitiu alcançar. Que aquela minha gula, pedindo sempre que ela fizesse mais, alegando que o que tínhamos não era o suficiente, a tinha cansado. Ou que talvez ela tenha percebido meus olhares ocasionais para outras, como se ela não fosse o suficiente para satisfazer minha dose de luxúria. Mas minha mente não se ocuparia tempo demais com isso. Depois de algumas tentativas o meu orgulho falaria mais alto. Nessa época meu sorriso já não era visto e minha voz raramente era ouvida. Tudo o que eu queria era te mostrar que, se não fosse minha, não seria de mais ninguém.
A vontade de me vingar fez com que uma bolha de ódio e rancor me preenchesse de tal maneira o interior que o dia de hoje era uma consequência óbvia.
E agora, com seu corpo repousando sobre o próprio sangue, eu penso no que fazer a seguir. Mesmo sabendo que não há o que pensar. Que pensar é o que precisa ficar fora da equação agora.
Tic. Olho meu punho e vejo que se passaram poucos minutos. O som de seu tiquetaquear jamais se fizera tão presente.
Recomponho minha postura e dou alguns passos em direção à estante de livros. Atrás de alguns dos meus favoritos estava escondido o velho revólver da família. Lembro-me de guardá-lo ali como garantia para a possibilidade de não suportar te ferir com a faca. Essa precaução se demonstrou desnecessária.
Tac. Deito-me ao seu lado e acaricio seus lábios enquanto lembro de beijos trocados. Em minha mente retornam algumas das boas lembranças do passado. O primeiro beijo, a primeira jura de amor eterno... Tolice, mas a graça na inocência não diminui a dor da perca.
Tic...
Eu te perdi por minha própria culpa. Eu sempre soube disso. Meus próprios pecados foram os responsáveis pela nossa separação. Eu sabia e ainda assim escolhi culpar outras coisas.
Tac...
De nada adianta admitir isso agora. Seu corpo está sobre o chão e eu estou deitado à sua frente com o revólver na mão. Resta apenas continuar.
Tic.
Deixo a ponta de meus dedos tocarem seus cabelos e passá-los para trás da sua orelha, como você costumava fazer quando queria olhar nos meus olhos antes de um beijo.
Tac...
O cano da arma se mostra frio em contato com a pele da minha cabeça. Meu dedo treme sobre o gatilho e minha última inspiração é alta.
Tic...
-Adeus. – Mantenho os olhos abertos para que sua imagem seja a última a passar por eles.
Tac...
Tic. Tic. Tic.

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