Uma Opinião Sobre: The Witcher
Apontamentos sobre os livros que inspiraram jogos virtuais, de
tabuleiro, filmes, quadrinhos e mais.
ESSE TEXTO NÃO CONTÉM SPOILERS
(Obs. Há apenas menção a um
detalhe de um dos contos, mas está devidamente indicado como spoiler - apesar
de não o ser)
Wiedzmin ou The Witcher é uma série de livros (entre eles, coletâneas de contos
e romances de fantasia) escritos pelo polonês Andrzej Sapkowski e seguem,
basicamente, as histórias de Geralt de Rívia, um dos últimos Witchers (caçadores de monstros)
restantes em uma Terra alternativa, ambientada em um mundo muito semelhante a
outros mundos medievais como “Senhor dos Anéis”, porém com influências de
diversos universos ficcionais (fantasiosos) e mitologias das mais diversas (com
claras referências a contos e fábulas modernos como chapeuzinho vermelho e
branca de neve, por exemplo). A série se inicia com o livro “O Último Desejo” e
se encerra com “A Dama do Lago”, tendo o autor escrito um livro chamado “Tempo
de Tempestade” posteriormente, mas que não tem ligação direta com a narrativa
encerrada pelo livro anterior (infelizmente, os dois últimos ainda não foram
lançados no Brasil).
Para quem não conhece o universo
criado por Sapkowski, basta saber que Geralt é um caçador de monstros por
encomenda e que vaga por cenários pitorescos à procura de pessoas dispostas a
pagar para se livrar de algum monstro - vilarejos que querem eliminar um
pequena praga, estarostes que desejem se livrar de grandes males, etc. Com uma
visão de mundo bastante cética e, em determinados momentos, até mesmo
grosseira, Geralt busca tão somente o dinheiro para pagar sua estadia e comida
do dia, sem demonstrar grandes ambições ou desejos. E é justamente em sua
simplicidade que Witcher demonstra
todo seu potencial.
Ao invés de entrar em pormenores
sobre a trama, creio que inicialmente seja mais interessante avaliar um aspecto
interessante dessa série literária. Assim como muitos brasileiros, eu nunca
tive contato anterior com a literatura polonesa e mesmo witcher chegou até mim somente porque a série de jogos (para quem
não sabe, existem alguns jogos virtuais - 3 principais, 1 adventure game -
baseados na série literária) me encantou de tal maneira que a existência dos
livros se tornou atraente demais para ser ignorada.
Assim, após um contato inicial
por intermédio dos jogos, ficou evidente como a literatura esconde pérolas que,
infelizmente, passam despercebidas por conta das limitações impostas pela
língua e distribuição de conteúdo. Afinal, eu não creio que vou aprender algum
dia a falar polaco e a distribuição dos livros para o português foi
evidentemente influenciada pelo lançamento dos jogos. Ou seja, não fosse o
apoio de outra mídia - os jogos eletrônicos - os livros talvez jamais chegassem
às minhas mãos. E seria uma pena se isso ocorresse, porque os livros merecem o
título de “geniais”. E a situação como um todo é lastimável, porque, apesar
desse universo conseguir fugir ao ostracismo, imagino eu que diversos outros
não tiveram a mesma sorte e se afogaram no oceano cruel do esquecimento. Resta
esperar que a internet, em seu constante avanço, elimine ao menos parte desse
problema.
Vamos aos livros. The Witcher se inicia com dois livros
compostos por diversos contos sobre Geralt e sua vida como bruxo. Esse contato
inicial, apesar de considerado dispensável por alguns (inclusive críticos), é
extremamente importante, pois demonstra diversos aspectos da obra de Sapkowski,
como a cultura prevalente no universo dos livros, o método de negociação entre
as pessoas, a maneira como as relações sociais são mantidas, as tensões
políticas entre os diversos reinos componentes, a maneira como a economia se
movimenta, a relação entre as diversas raças (como anões, humanos e elfos) e
até mesmo a diferença com a qual os Witchers
são vistos por todos. Os dois livros iniciais reúnem histórias fantásticas (das
quais vou me abster de fornecer detalhes para que são se inicie uma sessão de
spoilers) e a maneira como Sapkowski revela pequenos detalhes sobre a vida de
Geralt e a vida daqueles que o acompanham é fantástica, sem dar demais em
momento algum, mas também sem deixar o leitor no escuro por tempo
desnecessário. É uma verdadeira lição de como guiar uma linha narrativa de modo
simples, porém atraente. Nos dois primeiros livros, o que vemos é mais uma
interação, até certo ponto, não pessoal entre Geralt e o restante do universo
em que vive. O foco, obviamente, é apresentar as diferenças entre um bruxo e as
outras pessoas, da mesma maneira como Sapkowski também demonstra a diferença
entre o mundo “dele” e o “nosso”.
Outro ponto importante a destacar
aqui é que, desde o início, fica claro que essa é uma série de livros adultos.
Apesar de se conter, o autor em momento algum poupa o leitor das descrições de
acontecimentos desagradáveis. Sangue, ossos e vísceras são elementos constantes
e insinuações de sexo e cenas explícitas são trazidas a todo momento. Apesar de
ligeiramente apelativo, nenhum desses momentos é gratuito e todos eles servem
ao propósito de acrescentar algum realismo ao cenário fantástico no qual nos
encontramos naquele momento. Isso poderia soar como uma justificativa pobre,
porém, não o é a partir do momento em que todos os personagens mortos ou
“relacionáveis” nos são apresentados em suas três dimensões, a maior parte
deles até com a quarta dimensão (tempo) totalmente esquadrinhada, dando a todos
os movimentos da narrativa um peso importante e que muitas vezes não se vê em
livros fantasiosos atuais.
E é aí que The Witcher se destaca novamente. Apesar de ser um livro de
fantasia com um universo enorme e rico em detalhes, cheio de monstros e reinos
em guerra, não é nisso em que a narrativa se foca. Claro, a guerra existe nas
histórias contadas, os reis se preocupam com política e campos de batalha são
demonstrados no decorrer dos livros, mas esse nunca é o foco - tanto do leitor
quanto do escritor. O foco da história é a jornada de Geralt e aqueles que o
acompanham. Todos os momentos são carregados de uma carga dramática absurda
porque o leitor não foi levado a se importar com o destino do universo ou com a
destruição dos reinos - apesar de nada disso ser subestimado no livro -, mas
sim com os personagens que estão jogados no meio desse caos. Depois de ver
sangue e compreender que esse livro não teme em sacrificar ninguém, você sente
a urgência e o desespero pelos personagens quando eles estão em uma situação de
perigo ou mesmo quando eles devem tomar uma decisão política, pois, ao
compreender o universo, é natural que o leitor tome um posicionamento político
também (algo que também já foi levado a um nível altíssimo por obras como Crônicas de Gelo e Fogo). Ou seja, os
personagens são tão importantes quanto o mundo que os rodeia. Essa é uma lição
importante, porém esquecida por muitos autores e que torna a leitura tão
satisfatória quanto empolgante.
A ambiguidade desse universo
também é demonstrada durante esses dois livros iniciais. Apesar de sempre
presente, os principais exemplos estão demonstrados nos contos reunidos no
primeiro volume - e como o fazem bem! Geralt não é o mocinho típico ou esse
modelo de anti-herói atual, que parece fazer questão de se passar por vilão
enquanto a situação não o força a agir. Pelo contrário. Ele é apenas alguém com
necessidades e que quer viver sua vida em paz, mas que tem noções específicas
sobre o que é certo ou errado e segue esses princípios quando confrontado a
respeito. Isso faz com que ele tome decisões críveis e são raríssimas as
ocasiões em que é possível dizer “eu não faria isso”. O senso de justiça dele
parece ser um pouco acima da média, mas isso não prejudica a leitura, pelo
contrário, complementa a personalidade do personagem e faz com que a simpatia
com a história do bruxo que vaga à procura de emprego aumente a cada nova
página.
Além de Geralt, outros
personagens também precisam fazer escolhas e elas são sempre compreensíveis,
principalmente quando são precipitadas. A transformação a cada nova escolha é
evidente e nenhum personagem acaba seu arco narrativo da maneira como o
iniciou, pelo contrário, a experiência parece real justamente porque tudo o que
poderia ser extraído de determinado acontecimento parece ser absorvido pelos
envolvidos e isso se reflete em seu modo de pensar e agir, gerando acontecimentos
orgânicos e memoráveis (como a cena do banquete no livro “Tempo do Desprezo”, quarto da série, onde Geralt dialoga com
diversos personagens, em uma viagem por um evento que passa a naturalidade que
faz a série tão atraente). O mundo político não fica para trás, trazendo
questões complicadas de aliança, economia, estratégia e até mesmo emoções com
toda a competência com qual a série é guiada em outros aspectos.
A série oficialmente se encerra
com “A Dama do Lago” (infelizmente, apenas quem sabe ler espanhol ou inglês vai
ter acesso à conclusão da história no momento) e, durante toda a trajetória do
bruxo Geralt e da princesa Cirilla, tais aspectos se mantém e a narrativa,
embora apresente as tradicionais “barrigas”, as mesmas jamais se apresentam como
desgastantes (pelo contrário, muitas vezes surge o desejo de ler mais contos
“avulsos”).
Infelizmente, nem tudo é perfeito
e o ponto mais forte de Witcher, por
vezes, se volta contra a série. Minha única reclamação relevante diz respeito à
personagem de Ciri (ou Cirilla), que, embora muito interessante, em seus
momentos sozinha parece ter a qualidade desgastada, causando algum fastio e,
embora sempre tensa e perigosa, sua jornada durante os livros quatro (Tempo do Desprezo) e parte do cinco (Batismo de Fogo) são cansativas, algo
que, quando comparado à saga de Geralt soa com grande contraste. Apenas para
esclarecer: A jornada de Ciri é muito boa e interessante, porém, quando posta
lado a lado com os momentos com Geralt, embora com mais conteúdo, ainda soa
menos interessante, dando a impressão de que seu personagem, talvez por ser
infantil, seja menos completo e sofra com isso.
A tradução, principalmente para o
português, é excelente e deixa evidente os pontos fortes de Sapkowski: A
ocultação e a repetição intencionais. Diversas frases do livro são escritas com
o único e firme propósito de insinuar algo, gerando a resposta na mente do
leitor sem jamais confirmar a resposta com a palavra que você está esperando.
As frases são sempre curtas, mas com um objetivo claro que nunca é efetivamente
posto sob a luz, ficando na penumbra.
E, enquanto algumas palavras são
ocultadas a todo custo, outras são repetidas propositalmente.
POSSÍVEL SPOILER - A título de
exemplo, pode ser citado o conto que dá nome ao primeiro livro (O Último Desejo), que brinca o tempo
todo com o que seria o tal “Desejo”, sem dizer em momento algum o que
efetivamente é o desejo feito pelo bruxo, embora fique claro pela narrativa o
que foi desejado.
FIM DO SPOILER
Fica evidente que a preocupação é
encantar com a história ao invés de se preocupar com ser bonito tecnicamente
(uma avaliação feita, claro, dentro do que é possível auferir de um texto
traduzido) e o resultado não poderia ser mais satisfatório: O livro se mantém
na linha limite entre a incompreensão e diversão com aquilo que é apresentado e
a tentativa de compreender o que o autor tenta passar consegue sempre ser
recompensadora e nunca tão difícil ao ponto de fazer o leitor desistir.
Esse texto poderia se arrastar
por mais dez páginas, mas é hora da conclusão, que, a essa altura, é óbvia: A
saga The Witcher é uma coleção de
livros fantástica, com uma objetividade e riqueza em detalhes raramente vista
em livros de fantasia e é a oportunidade perfeita para conferir um universo
novo e perder algumas tardes vivendo junto de um dos mais interessantes
personagens já construídos em alguns dos livros mais bem escritos em seu
gênero.
Lucas Alves Serjento
Enchendo Estantes
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