América



América

Jardim

trago na alma o inventário das andanças,

palavras proferidas no deserto das planícies

que percorrem um tempo incontestável.

entre as árvores e as montanhas, a história,

o milho semeado e colhido.

a cana, o cacau, o tabaco, o trigo, o café.

entre serras e pampas o voo das mariposas

é uma prece debaixo dos olhos do deus católico.

ouço tuas sílabas de encanto.

américa.

desfilo meu enredo andarilho,

passo a passo rumo à alvorada.

quantas trilhas, quantos limites!

a travessia ao anoitecer no titicaca,

as cordilheiras dos andes aquecidas pelo sol

e a noite debaixo do céu de macchu picchu.

as águas de el nino vem inundar o passado

e tudo chega como um oceano de saudade

por todos los amigos e los hermanos.

américa.

doze de outubro,

mil quatrocentos e noventa e dois.

passos a ecoar pelos becos seculares

de quito e de la paz.

ainda não ouvi tudo quanto queria ouvir,

derramo o cântaro de minhas lástimas

sobre tuas feridas abertas.

lembro-me da fascinação do teu corpo

nascido da utopia, cenário manchado pelo suor

de negros homens no canavial

ou amarrados ao tronco, a chibata a ecoar

em suas costas, os campos semeados

e a esperança tatuada em tua pele.

o perfume da terra cultivada,

nos seus frutos germinava o encantamento

e nossas pálpebras se abriam para um novo dia.

américa que vivi,

entre risos e o pranto, o esplendor de tenochtitlan.

a américa primeira,

asteca, maia, inca e guarani,

a américa mãe,

sangrada por cortez e pizarro.

a pátria de todos nós,

a heroica pátria de bolívar

pilhada e consumida

pelas garras dos tiranos.

vi tuas casamatas abertas

e as densas trevas que caíram sobre ti.

vieram os anos de chumbo,

os labirintos de dor e as atrocidades.

na penumbra morreram todas as flores.

canto a liberdade asfixiada,

pronunciando nomes como médici, somoza, fidel, pinochet

e seus rastros homicidas naqueles dias amordaçados.

canto as valas comuns,

as ossadas do atacama,

os esqueletos do araguaia.

meu réquiem é para os desaparecidos,

meu canto é para os filhos da ditadura,

para os sobreviventes e suas cicatrizes,

para as viúvas e os órfãos.

para las madres de plaza de mayo

e suas lágrimas perenes.

séculos se passaram

e tuas chagas ainda emergem nos jornais.

malditos condores,

malditos generais.

canto por ti, américa, por tuas favelas,

por teus bairros miseráveis e por teus palácios,

por teu brilho ofuscado pela tortura.

américa de tantos massacres e cadafalsos,

ouço-te na voz melancólica das metralhadoras

derrubando o ultimo jagunço em canudos.

uma américa de martírios,

estrangulada em atahualpa,

esquartejada em cusco,

sacrificada em che guevara.

executada em cada prisão,

e nos rituais da morte do dói-codi.

tanto luto, tanta memória

e nenhum perdão,

um áspero clarim ao entardecer

distante, tão distante,

ressoa nos planaltos e nas cordilheiras

e hoje, em busca de si mesma

ainda abrigas o mesmo fragmentado coração.

o que te aguarda, américa?

os anos se foram, inquietantes e atrozes

restando um mundo com seu clamor colonizado.

busco em teu íntimo silêncio,

por tudo aquilo que perdemos.

meu pensamento numa oração e num lampejo,

viaja ao eldorado,

lá, muito além do amazonas, um lugar deslumbrante.

muito além do aconcágua

muito além da sombra de montezuma

e dos acordos de tordesilhas.

falo em nome desta américa indígena agonizante,

falo em nome de uma américa proletária

em nome do ouro e da prata ensanguentados.

das roupas gastas dos camponeses sobre a terra árida

e a resignação de um povo com sua misteriosa mudez,

seu grito contido que em algum lugar se perdeu,

sua fome urgente e seu sangue.

suas praças onde se erguem as estátuas dos seus heróis

falo das barriadas,

da miséria, da varíola e do frio,

falo em nome dos meninos que vendem balas nos sinais.

falo por todo discurso subtraído,

reprimido pelos fuzis, detido, interrogado, ameaçado

falo da marca da tirania encravada nas paredes

falo de uma era de desterros e torturas,

do terror uniformizado.

tenho os punhos abertos e o peito vazio.

em meu gesto de amor desesperado.

meu olhar descalço e peregrino

assistiu a nostalgia do exílio e dos encarcerados.

dos párias, dos bêbados, dos vagabundos.

caminhando pela terrível solidão branca das ruas,

pelo destino oculto das metrópoles

abre-se o itinerário clandestino das minhas pegadas

por entre as trincheiras escavadas dos meus sonhos.

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