Chacina



Chacina

Francisco Ferreira

Dois anos no exterior.
Nenhuma carta, e-mail, telefonema... Sequer uma mensagem!
Retornou.
Há 10 metros de casa o velho telefone público. Discou torcendo para que a mãe atendesse.
−Mamãe?
−Vitória? Meu Deus, é você? Estava morta de preocupação com você, já a acreditava morta. Mas se eu disser que sonhei com você hoje, que tinha voltado, você crê? Como você está? Tudo bem? Quando você volta? 
−Sim mamãe, tá tudo bem! E o pai e meus irmãos?
A mãe se sobressaltou. “Vitória, perguntado pelo pai e os meninos. Será que está acontecendo alguma coisa?”
−Ah, minha filha o de sempre. Chegou bêbado e já foi dormir. Os meninos também! Mas se quiser falar com eles, eu os acordo.
−Não precisa, mamãe. Boa noite!
−Oh, filha. Depois de dois anos... Não desliga não... – mas já havia desligado.
Márcia ouviu baterem na porta. “Quem poderá ser a esta hora, meu Deus? Só podem ser os vizinhos pedindo alguma coisa emprestada. Nunca devolvem nada. Gente folgada!” – Abriu.
−Vitória? Mas eu falei com você há um minuto???
A moça apontou-lhe com a cabeça o telefone público do outro lado da rua e estendeu-lhe a mão. A mãe não se conteve e aninhou a filha nos braços, soluçando. Coisa estranha aquele abraço, já não se lembrava do contato com a mãe. Esquecera-se das suas formas, do seu cheiro. Aliás, jamais o conhecera. Gente era algo muito estranho e imprevisível. Retribuiu, sem emoção, o abraço.  
−Venha Vitória. Vou acordar o seu pai e os meninos. Eles hão de querer vê-la!
−Não precisa, mamãe. Amanhã os vejo. Minhas coisas ainda estão no meu quarto? Tô com sono. Vou me lavar e dormir.
−Mas o que é isso, menina? Vou esquentar a janta, você deve estar com fome.
“A mesma conversa fiada de sempre. Com ela ou com os irmãos era sempre a mesma coisa. Para a Velha Sádica bastava que os alimentasse com a sua comida requentada e sem tempero, feita sem nenhum amor e estava tudo bem! Desde que cozinhasse a comida chorada que o Velho Ordinário colocava dentro de casa e estava tudo bem. Desde que houvesse pão para os seus, o circo é que se danasse. E que se danassem todos aqueles que desejassem dela, algo mais. Isso já não bastava?
−Estou sem fome, não precisa. Obrigada, mamãe...
−Está bem. Você deve mesmo estar cansada. Ouvi dizer que no exterior vocês trabalham feito burro. Igual a escravos, que não tem tempo para nada. Você tá parecendo muito mais mirrada do que quando saiu daqui, mas deve ser a vida que tá levando, né mesmo? Mas agora que você tá aqui, vai recuperar as carnes e as cores rapidinho. Já já e tá corada de novo.
“Ah! A Velha Sádica destilando seu veneno. Pobre coitada. Quanto está enganada, mas se lhe faz bem, deixarei que pense deste jeito.” 
−Pois é, mamãe, vá dormir, amanhã a gente se fala mais. Vai descansar... – um sorriso desdenhoso bailou no rosto de Vitória. “Vai descansar!”
Deitou-se sabendo que não iria dormir. Tão surreal aquela situação. Sentia que nunca fez parte daquilo, embora estivesse no seu quarto. O mesmo velho quarto, rodeada de suas velhas coisas, como em mais de vinte anos de sua vida. O guarda-roupa de portas amarradas e caindo para um lado; as mesmas bonecas mutiladas e de segunda-mão; a mesma cama barulhenta e fedendo a naftalina. Tudo igual! O que então não condizia, estava fora do lugar?  O que, naquele contexto, diferia e não se encaixava? Desde os cinco anos dormia sozinha naquele cômodo minúsculo e cheio de goteiras. Quente feito o inferno no verão e, no inverno, gelado. Desde que a mãe surpreendera Rildo a observando enquanto dormia, se masturbando. “Aquele porco!” Foi a primeira e única vez que a Velha Sádica saiu de sua letargia e tomara o seu partido. O menino ficou andando com dificuldades durante uns três dias, resultado da tunda de cabo de vassoura. O Velho Ordinário admoestou o filho, rindo:
−Qualquer uma. Mas sua irmã, não!
Mas surrou-a para que ela “tomasse modos de moça e não provocasse os rapazes!” Cinco anos! O que ela poderia saber?
Só poderia ser isto que não se encaixava: a ausência do medo.  Não obstante ao nojo que nutria pela família, não havia mais medo. “Que sensação maravilhosa é não sentir nenhum medo. Não me sobressaltar e tremer a cada barulho vindo do interior desta toca suja, a que chamam de casa.” Já que os barulhos do exterior jamais a preocuparam ou assustaram! “Eu poderia entrar no quarto de qualquer um deles e gritar: eu não tenho mais medo de vocês, ouviram? A nenhum de vocês. Nem ao Velho Ordinário, nem ao Porco do Rildo e nem ao Gílson, esta víbora mesquinha!” mas a hora ainda não chegara. Era muito cedo.
Era cedo para acordá-los com seu desabafo tardio e inoportuno, mas para matá-los, era precisamente o momento.
Na manhã seguinte, já longe dali, da família, apenas as manchetes do jornal. 

Sobre o Autor
Francisco Ferreira é um poeta natural de Conceição do Mato Dentro, com mais de 600 classificações em concursos literários (Brasil, Portugal e Itália), participante de centenas de antologias e de várias academias literárias (RS, SP, ES, RJ, BA). Administra o blog http://impalpavelpoeiradaspalvras.blogspot.com.br/ .

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