Duas Verdades

Duas Verdades

Gabriel Piazentin

Mundt, 12 de fevereiro de 1992
Olá, mãe. Esta primeira carta que escrevo desde que cheguei aqui no campo de batalha de Liebl. A viagem até aqui foi longa mas bem tranquila. Conheci alguns outros soldados da nossa região. A partir de agora vamos seguir em comboios até o acampamento em Noch. O cenário tem paisagens sem uma viva alma pelo caminho nem sinal de civilização. Do avião, passamos pelo mar de Nein, era uma vista muito bonita. Não se preocupe, está tudo bem comigo, e eu vou sempre escrever pra você. Você não precisa se preocupar, eu fui designado para o centro de comunicação do pelotão. Aquele meu joelho ruim me salvou dessa vez. Não devo ficar muito tempo por aqui. Já tenho saudades de casa.

Mundt, 12 de fevereiro de 1992
Meu caro irmão Doug, enfim, cá estou. Nem acredito que realmente fui obrigado a vir para cá. Sei que você gostaria de estar no meu lugar. Quando você completar a maioridade é possível que a luta ainda esteja ocorrendo. É uma pena o conflito ser aqui, o lugar é bonito mas logo será esburacado por bombas e gratinado de sangue. Eu não sei como vou agir, a minha obrigação é fazer o que me mandarem. Eu preferiria ficar no acampamento, mas não tenho certeza, posso ser convocado quando menos esperar. Não mostre essa carta pra mãe, eu estou escrevendo a ela também. Agora, a viagem continua. Escrevo de novo quando tiver oportunidade.

Ditsch, 01 de março de 1992
Olá, mãe. Depois de dias conseguimos uma pausa. Tivemos que montar acampamento, a região ficou pantanosa demais e os carros não puderam seguir. É cansativo mas eu estou em condições físicas de aguentar o tranco. Tenho conversado com um dos rapazes, Téo. Parece ser alguém meio fora da casinha, mas é bom sujeito. Gosto da vivacidade no olhar dele. Ele não vê a hora de o conflito começar de vez. Ainda temos mais alguns quilômetros pela frente. O pelotão também encontra-se animado. É possível que ao chegar lá as nossas tropas aliadas já tenham resolvido grande parte da situação. Logo volto para casa. Beijo.

Ditsch, 01 de março de 1992
Doug, só você mesmo pra achar isso tudo bonito. Os insetos que nos comem dia e noite, as febres que dão baixa antes mesmo do confronto com o inimigo. Sem contar o calor que faz aqui e a nossa desidratação. Tudo isso e ainda nem estamos próximos da coisa começar pra valer. É um teste de resistência, vamos chegar cansados. Temos esse pântano para atravessar, o acampamento aliado está logo após. Eu queria era estar em casa resolvendo os meus problemas burocráticos e reclamar da rotina e do cotidiano. Pensando melhor, é possível que esse trecho seja censurado ou que essa carta nem chegue a você. Se chegar, era isso.

Noch, 12 de abril de 1992
Mãe, desculpe o atraso em escrever. Chegamos aqui no acampamento semana passada na verdade. Como toda mudança, algumas situações emergenciais tomaram meu tempo e só pude ter algum descanso agora. O front fica a alguns quilômetros daqui. Tive contato com o exército aliado. Não falamos as mesmas línguas mas estamos diante de uma mesma ideia a ser combatida. A disposição do meu grupo está agora cada vez maior, o pessoal está animado para pegar em armas. Eu por ora faço o que me mandam. Saudades de casa.

Noch, 12 de abril de 1992
32. Este foi o número de soldados que perdemos naquele pântano maldito. O grupo ainda é grande, restaram outros 150. Mesmo assim, a guerra matou antes mesmo de chegarmos ao campo e enfrentar o inimigo. Alguns começaram a fraquejar ao ver a morte dos outros. Nem todo mundo aqui tem preparação psicológica para lidar, veja que muitos são reservistas que nunca fizeram um treino militar sério. Um pelotão foi designado para ir ao front junto ao exército aliado, estamos dividindo acampamento. Dos 50 que foram, 42 não voltaram. Outra grande baixa. Ouvi que vão chamar mais reforços. Para então morrer antes mesmo de entrar em combate e ter nova chance de voltar sem vida. Isso não faz nenhum sentido.

Noch, 29 de abril de 1992
Mãe, soube que o nosso exército pediu reforços. Você deve ter visto sobre convocação de novos soldados na TV. Tivemos sim algumas baixas. Téo mesmo, lembro de ter falado dele, coitado. Gostava dele. Às vezes eu não entendo a lógica das guerras. Quanto a mim, estou na cabine de comunicação, passando e recebendo códigos morse e mensagens em rádio. Os nossos aliados também pediram novos soldados. Acredito que com isso estamos próximos de encerrar por aqui. Vamos manter o otimismo, não?

Noch, 30 de abril de 1992
Desde os meus treinos no quartel daí eu não lembrava como era pegar em arma. A nossa submetralhadora parece mais pesada do que antes. Pode ser mesmo, adiciona-se agora o peso da vida alheia. É bem verdade que não concordo com a ideia dos nossos, ditos, inimigos. Também não concordo que eu deva tirar a vida deles. E pior, nós todos somos peões. Gente muito grande acima de nós que decide se a guerra continua ou para. É insano pensar que as coisas tomem essa proporção, e de como muitos soldados sentem enorme prazer e orgulho nisso.

Noch, 17 de maio de 1992
Olá, mãe. A guerra segue com a frieza que só a ela cabe. As baixas seguem em alta – e eu me orgulho de fazer um jogo de linguagem desse no estado em que estou. Digo, O clima tem sido de tensão. De qualquer forma o nosso acampamento está seguro. Tenho um pouco de medo, mas uma hora as coisas vão se resolver. E você pode sempre esperar pelo meu contato, eu escrevo cedo ou tarde, você sabe. Te amo.

Noch, 21 de maio de 1992
Fui convocado para ir ao front. Pela segunda vez. Da primeira eu retornei. Os barulhos, as explosões, os gritos, como se alma humana pedisse clemência ante a imbecilidade dos ricos e poderosos que brincam de guerrear como se fôssemos uma rinha de galos. Não sei se eu matei alguém, não dá pra ver direito. Eu só ficava próximo do pelotão no campo e me arrastava enquanto atirava a esmo. Disseram de bater em retirada e eu dei graças por aquela breve loucura ter encerrado. Isso vai ficar na minha memória pra sempre, você não tem noção de como é. Contando com o exército aliado fomos em 200 soldados. 65 retornaram. É só tiro, morte e desgraça, sem lógica nenhuma. Amanhã eu vou novamente. Escrevo de antemão. Se tudo der certo logo mais eu conto de novo como foi esse novo e estúpido combate. Só quero sair daqui.

Sobre o Autor:


Minibio: Linguista-jornalista ou o contrário. Tem um relacionamento complicado com a linguagem. Escreve aqui e ali pela internet. Tem textos datados de 10 anos atrás em alguns ambientes virtuais. Não tem frequência de publicação pré-definida. Acredita que um texto nunca está revisado o suficiente.

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