Ilusão


Ilusão

Texto por Lucas Alves Serjento

Imagem da capa: tsukiko-kiyomidzu. Mais em: Pixabay.com




-Você precisa saber quando dar um tempo para se acalmar. Não é toda hora que estou disposta a lidar com seus problemas.

-Como se você tivesse muito para lidar agora.
-Ei, escute aqui: Eu não estou mais aqui para isso. As coisas estão diferentes. Goste você ou não.
-Eu não me importo o bastante para gostar ou deixar de gostar. Você deveria saber.
-Ah, é mesmo?
Ela sorri e dá um passo para trás, posicionada na soleira da porta. Frente a frente, os amigos de infância se encaram por alguns segundos. Ele pensa na maneira como ela o encara e sabe que pode ver através de suas palavras. Esse superpoder é uma das coisas que odeia nela.
Duas pessoas frente a frente. Um homem na frente de uma mulher. Não. Um rapaz, com olhos de alguém que ainda não amadureceu o bastante. Olhos negros e profundos. Ele endireita a postura ao perceber o silêncio. Seus olhos brilham, procurando uma saída da armadilha na qual se colocou. Ele encara o rosto dela. Como é possível um rosto tão lindo? Cabelos lisos, loiros, tez clara, um rosto fino e aqueles olhos azuis. Olhos sagazes, de quem tem ciência do próprio poder.
-Ah, é mesmo? Você não se importa? E eu deveria saber disso como, se só o que parece querer é me importunar, como se ainda fôssemos crianças?
-Nós temos vinte e sete anos, mulher. Não somos tão velhos assim!
-Mas somos velhos o suficiente para deixar a infantilidade para trás. – Ela olha para suas costas, como se conferisse se ninguém lhes escutava.
-Não foi isso que vim falar com você. Você sabe que não foi sobre isso que eu vim falar.
-Ah, é? E sobre o que você veio falar comigo às duas da manhã na minha casa? – Ela deu um passo à frente, fechou a porta às suas costas. Os dois sozinhos na varanda da casa. – Não. Espera um minuto. Deixa eu adivinhar. Eu aposto que consigo.
Ela colocou um dedo embaixo do queixo, fingindo que pensava. Ele não conseguia imaginar uma maneira de sair daquela situação e ela se recuperou antes que ele pensasse em algo.
-Vamos ver: Você estava saindo com uma garota, mas ela não era o bastante. De repente, ela não preenchia todos os requisitos imaginários que você formula quando está com medo de dar um passo adiante? Ou então ela falou alguma coisa que te pareceu remotamente ruim e isso foi motivo para você falar alguma coisa que a magoou? – Ela notou um movimento minúsculo e involuntário do ombro dele. – Ah, foi isso? Então vamos seguir daí. Vocês brigaram. Que coisa horrível, não? Justamente no dia em que você descobriu que os pais delas estavam vindo para a cidade. O que houve? Outra promoção está disponível no seu emprego e você acha que está na hora de agir? Ter que tomar uma atitude te assustou novamente e a única saída era afastar a garota?
-O que você quer dizer com isso?
Ela fechou o agasalho com sua mão livre. O frio do inverno fazia com que o hálito formasse fumaça no ar. Ela suspirou. Ele se distraiu com isso por um segundo antes dela começar.
-Nós nos conhecemos há quanto tempo, Fernando?
Ele não falou.
-Dez? Quinze anos? Vamos lá. Você se lembra. Treze, não é? Nós tínhamos onze quando conversamos pela primeira vez. Sabe o que eu pensei logo que te conheci? Eu pensei: Nossa! Que menino esperto! Sabendo tanto, ele pode ser o que quiser! Ele pode ter o que quiser!
Ele não falou.
-Eu pensei em você como alguém superior. Já naquela época você se destacava. Sabe porque? Porque tinha uma inocência nos seus olhos que você mesmo não tentava esconder. Não existia essa casca de mentiras da qual você se veste todos os dias. Eu vi, naquela época, alguém disposto a tentar.
Ele não falou.
-Nós crescemos juntos desde então. Faz ideia da inveja que eu tinha de você naquela época? Quanto eu queria poder ser igual, pensar igual, fazer igual? Em parte deve ser culpa minha a maneira como você está hoje. Afinal, perdida na minha ânsia de crescer, eu não vi o que estava te acontecendo. No que você se tornou desde então. Mas eu comecei a perceber, ainda que sem querer. Eu via que você não tentava. Eu via que você não fazia, não pensava e que, depois de tudo, não podia. Sem querer, percebi a distância que se formou entre nós e o abismo no qual você se enterrou por causa desse medo de arriscar.
Ele. Não falou.
-Eu tentei entender, mas já parecia ser tarde demais. Eu tentei ajudar, mas você nunca quis ser ajudado. Eu tentei esperar, mas você nunca veio. E aqui estamos nós. Mais uma vez, você vem até a minha porta, querendo que eu faça por você o que você mesmo deveria ter feito. Quanto tempo, Fernando? Treze anos e agora você espera que algo aconteça? Agora você vem na minha porta, depois de ter bebido, quando eu já não estou mais aqui? Vamos embora, querido. Você não está bem. Eu disse que devia ter dado um tempo. Talvez ter ido para casa. De que adianta vir aqui agora? Vamos lá. Acredita que você quase invadiu uma casa só por causa da aparência? Nem é tão igual assim.
Ele se manteve calado. Deixou-se pegar pelo braço e caminhou devagar na direção da rua.
-Treze anos. – Ela ri e seus ombros sacodem. – Depois de treze anos você decide que quer vir à minha casa e se declarar para mim? Pelo menos acerte a casa, seu idiota.
Ele não responde. A voz não sai. Como pôde se enganar dessa maneira?
Um homem que se guia, cambaleante, em uma rua deserta, buscando um apoio que não existe, procurando o caminho de casa.

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