Projeto Renascimento - João do Rio
Ontem, às 6 horas da tarde, fui buscar ao clube da rua do Passeio o velho barão Belfort, que
me prometera mostrar, três dias antes, a sua cara coleção de esmaltes árabes. O barão jogava e perdia
com um moço febril, que à lapela trazia um crisântemo amarelo, da cor da sua tez. Ao ver-me,
disse amavelmente:
— Estamos a jogar. O Osvaldo ganha como um inglês e com a alucinação de um brasileiro.
Estou perdendo e apreciando este bom Osvaldo, que ainda tem emoções.
Os seus olhares seguiam, frios e argutos, o jogo do bom Osvaldo, e, a cada cartada,
tamborilando os dedos na mesa, Belfort sorria um sorriso mau, entre desconfiado e satisfeito. De
repente, porém, as pupilas acenderam-se-lhe. Pôs as duas mãos nervosas na mesa, e perguntou,
enquanto mais pálido o moço estacava:
— E tu não jogas?
— Não.
— Fazes bem. Um escritor do tempo de Balzac dizia que o jogo era para a mocidade o
veneno da perdição. O veneno! ora vê tu, o veneno!
Sorriu com delicadeza.
— O Osvaldo permite? Vou embora sem mais um real. Até amanhã. E não deixe de tomar
água de flor de laranja...
Levantou-se, mirou as unhas brunidas, mirou a gravata, e saiu, deixando o jovem só naquele
salão que o pleno verão tornara deserto. Acompanhei-o, não sem olhar para traz. O moço pendia a
cabeça na sombra, e assim pálido, com um pálido crisântemo, os seus olhos tinham chispas de susto
e de prazer.
Embaixo, no vestiário, o barão deixou que lhe enfiassem o paletó, mandou chamar o coupé ,
e partimos discretamente, sob a tarde luminosa e cor de pérola. Belfort aconchegou-se à almofada
de cetim malva, acendeu uma cigarrilha do Egito com o seu monograma em ouro, e, enquanto o
carro rodava, indagou:
— Que tal achaste o Osvaldo? É o meu estudo agora. Havia meia hora que me roubava
escandalosamente... Não lhe disse nada. Ainda é possível salva-lo...
— Quer perde-lo? indaguei habituado ás excentricidades desse álgido ser.
— Oh! não, quero gozá-lo. Tu sabes, o homem é um animal que gosta. O gosto é que varia.
Eu gosto de ver as emoções alheias, não chego a ser o bisbilhoteiro das taras do próximo, mas sou o
gozador das grandes emoções de em torno. Ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os paroxismos
sentimentais dos outros é a mais delicada das observações e a mais fina emoção.
— Oh! ser horrível e macabro!
— Seja; horrível, macabro, mas delicado. É por isso que eu não quero perder o Osvaldo,
quero apenas gozá-lo. Preciso não limitar a minha ação humana aos passeios pelo Oriente, às
coleções autênticas e a alguns deboches nos restaurantes de grão tom. Mas daí a perde-lo, c’est trop
fort...
— Pois não imagina o mal que fez ao pobre Osvaldo. O rapaz estava horrivelmente pálido!
— Tal qual como o outro. Que exemplar, meu caro! que caso admirável! Esse pequeno ha
seis rneses odiava o víspora. Hoje tem a voracidade de ganhar, e tamanha que já rouba. Amanhã
arde, queima, rebenta numa banca de jogo. Ah! o jogo! É o único instinto de perdição que ainda
desencadeia tempestades nos nervos da humanidade. O Osvaldinho é tal qual o outro, o Chinês, a
minha última observação.
— O Chinês?
Belfort soprou o fumo da cigarrilha, sorrindo.
— Imagina que vai para um ano fui apresentado a um rapaz chamado Praxedes, filho de
uma chinesa e de um negociante português em Macau. O homem falava inglês, estava no comércio,
e vinha de Xangai, com um carregamento de poterias e bronzes por contrabando, para vender.
Simpatizei com ele. Era imberbe, ativo, paciente, dizia a cada instante frases amáveis, e casara com
uma interessante rapariga, a Clotilde — Clô para os íntimos. Conversou da China, dos boxers,
confessou o contrabando e levou-me a vê-lo. Que vida feliz a daquele casal!
O Praxedes saía pela manhã, trabalhava, voltava para o jantar, e não se largava mais de
junto da Clô. Não tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês espantoso, sem dragões e
sem vícios! Estudei-o, analisei-o. Nada. Legislativamente moral.
Uma noite em que o convidara para jantar, jogamos. Adivinharia alguém que cratera
esperava o momento de rebentar nessa alma tranquila? A senhora, a Clotilde, cantava no meu
piano, com voz triste, a ária do suicídio da detestável Gioconda. Eu estava receoso que depois
surgissem variações sobre o bailado das Horas. Disse-lhe despreocupado — “ Quer jogar?” — “
Não sei”. “É sempre agradável ensinar mesmo o vício”. — “ Então ensine”. Pegou das cartas,
olhou-as indiferente, mas as minhas palavras ouvia-as desvanecedoramente. Jogamos a primeira
partida. Os seus olhos começaram a luzir. Jogamos outra. — “ Mas isso assim sem dinheiro?
Ponhamos dois tostões ”. — “ Pois seja ”. Perdi. “ Redobra-se a parada?” — “Oito tostões?” — “
Sim”. — “ Pois seja” À meia noite jogávamos a dez mil réis, e Clotilde, muito cansada, já sem
cantar, fazia inúteis esforços para o arrancar à mesa.
Deitei-me sem conclusões, e só no dia seguinte, quando o chinês enleado apareceu
pedindo outra partida, é que compreendi o assombro. A paixão estalara, — a paixão voraz, que
corrói, escorcha, rebenta... Invejei-o, e, como homem delicado, joguei e perdi No outro dia,
Praxedes voltou. Levei-o ao clube, à roleta, donde saiu a ganhar pela madrugada.
Ah! meu caro, que cena! que fina emoção! O jogo, quando empolga, domina e envolve o
homem, é o mais belo vício da vida, é o enlouquecedor espetáculo de uma catástrofe sempre
iminente, de um abismo em vertigem. O Chinês era patético. Com os dedos trêmulos, assoando-se
de vez em quando, os olhos embaciados, quase vítreos, o Praxedes rouquejava num estertor silvante
que parecia agarrar-se desesperadamente à bola: 27, 15, 2ª dúzia! 27, 15, 2ª dúzia! E a bola corria, e
a alma do pobre esfacelava-se na corrida, esforçando-se, puxando-a para o numero desejado, num
esforço que o tornava roxo...
Jantei no clube só para não perder algumas horas o interesse desse espetáculo. Também
durante três dias e três noites Praxedes não deixou a roleta. Estava pálido, fraco. A gente do clube,
vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já o tratava de dom Praxedes. Ao cabo de uma
semana, entretanto, a chance desandou. Praxedes começou a perder bruscamente com gestos de
alucinado, espalhando as fichas como quem arranca pedaços da própria carne.
— “Calma, meu caro, dizia-lhe eu “. — “ Impossível! impossível!”, murmurava ele.
Pediu-me dinheiro, dei-o, pediu a outros, deram-lho. Pediu mais — deixou de ser o dom
Praxedes, recebeu recusas brutais. Acabou não voltando mais ao clube. Eu, porém, sentia-o em
outros antros, definitivamente preso à sua cruz de horror, à cruz que cada homem tem de carregar
na vida...
Certa noite, meses depois, encontrei-o numa batota da rua da Ajuda, com o fato enrugado
e a gravata de lado. Correu para mim, “Foi Deus que o trouxe. Estou farto de peruar. Isto de
mirone não me serve. Empreste-me cinquenta mil réis para arrumar tudo no 00. Ah! está dando
hoje escandalosamente. Faremos uma vaca? Vai dar pela certa.”
Agarrou a nota como um desesperado, precipitou-se na roda que cercava o tableau da
direita: “Tenho aqui cinquentão; esperem!” E caiu por cima dos outros, com o braço esticado.
O duble-zero falhou. Ele voltou cínico: “ É preciso insistir; deixe ver mais algum. Não dá?
Olhe, escute aqui, hipoteco-lhe uma mobília de quarto, serve?”
Compreendi então a descabida vertigem daquela queda. Tive pena. Arrastei-o quase à força
para a rua, fi-lo contar-me a vida. Estava desempregado, abandonara o emprego, vendera o
mobiliário, as jóias da Clô, os vestidos, as roupas, mudara-se para uma casa menor e alugara a sala da frente. A cábula, a má sorte, a guigne perseguiam-no, e, pendido ao meu braço o miserável
soluçava: “ — Havemos de melhorar, empreste-me algum. estou sem níquel !”
Deixei-o sem níquel, mas fui ao outro dia ver a Clotilde, uma flor de beleza, com os olhos
vermelhos de chorar e as roupas já estragadas. Ia sair, arranjar dinheiro... — “ E seu marido? ” — “
Meu marido está perdido. Anda por aí a jogar. Há dois dias não o vejo; hoje não comi...” — “
Abandone-o! ” — “ Abandona-lo eu? E a sociedade, e ele? Que seria dele? ” — “ Ora, ele! ” —
“Ele ama-me, ama-me como dantes. Mas que quer? Veio-lhe a desgraça. Às vezes brigo, mas ele
diz-me : Ai ! Clô, que hei de fazer? É uma força, uma força que me puxa os músculos. Parece que
desenrolaram uma bola de aço dentro de mim, tenho de jogar. E cai em prantos, por aí, tão triste,
tão triste que até lhe vou arranjar dinheiro, que saio a pedir...”
É espantoso, pois não? O homem tinha uma bola de aço e a fidelidade da mulher! Só esses
seres especiais conseguem coisas tão difíceis!
Um instante o barão calou-se. O coupé rolava pela praia, e a noite, caindo, desdobrava por
sobre o mar a talagarça fuliginosa das primeiras sombras.
— Respeitei a Clotilde, por sistema, já assustado com as proporções emocionais do marido.
Ao outro dia, porém, Praxedes. com sorrisinhos equívocos na face escaveirada: “ Esteve com a Clô,
hein? Conservada apesar da desgraça, a minha mulherzinha, pois não?...” Recuei assombrado.
Aquele homem bom, digno no fundo, aquele homem que amava a mulher, para arranjar dinheiro
.com que satisfazer as cartas e a roleta, mercadejava-a aberta, cínica, despejadamente. — “Que
queres tu? indaguei áspero, tem vergonha, vai, some-te!”
— “Eu hipoteco uma mobília. Só quinhentos, só quinhentos!”
Era a alucinação. Corri-o, e esperei ansioso como quem espera o final de uma tragédia,
porque tinha a certeza do paroxismo daquele vício. Afinal há de haver seis meses, antes do meu
encontro com o Osvaldo, li, na cama, às 3 da manhã, este bilhete desesperado “Venha. Praxedes
matou-se. Estou sem ninguém. Acuda-me. — Clô”.
Ai! menino, não sei o que senti. A minha vontade era ver, era saber, era acabar logo.
Precipitei-me. Quando cheguei, às voltas com a polícia que queria levar o corpo para o Necrotério,
Clotilde, desgrenhada, com os lábios em sangue, caiu nos meus braços. — “ Então, como foi isso? ”
— “ Sei lá como foi! Tinha que ser! A desgraça! Estava doido. Hipotecou a mobília, os juros eram
semanais. Não arranjei dinheiro e o judeu levou-a. Dormi no chão. Ontem não apareceu. Hoje
estava eu a dormir quando o senti que caminhava. Risquei o fósforo. Era ele, lívido, embrulhando a
casaca do casamento. Não sei o que me deu. — “ Onde vais?” — “Vou ver se arranjo uns cobres,
respondeu. Preciso jogar, sinto uma ânsia, não posso mais.” — “Estás doido!” — Não estou, Clô,
não estou, fez ele arregalando os olhos. Eu fui cruel: olha que se vendes a casaca ficas sem roupa
para o enterro. Ele parou. “ Para o enterro? para o meu enterro? É melhor mesmo, é melhor mesmo,
eu não posso mais !” E, de repente. desesperado, começou a bater com a cabeça pelas paredes.
Praxedes ! Praxedes ! Não faças isso! Praxedes! Gritei, solucei. Qual! Cada vez arrumava o crânio
com mais força de encontro às quinas das portas. O som, ah! esse som como me ensandece! Ainda
o ouço ! E ele todo em sangue, todo em sangue... Agarrei-o. Arrastou-me até à janela, voltou-se,
deixou-se cair em cheio com a nuca na sacada, esticou o pescoço desesperadamente e rodou... Oh!
o horror! salve-me! salve-me!”
Abri o grupo dos agentes, fui ver Praxedes. Estava cor de cera, com a cabeça fendida e os
lábios coagulados de sangue roxo. E o olhar vítreo, a mão recurva, assim, sob a luz da madrugada,
pareciam seguir ainda e acompanhar o mal a que o impelira a sua bola de aço.
Esse record de emoção desesperada prostrou-me.
Nunca vi sentir tão vertiginosamente.
O carro parara. O barão saltou, subiu de vagar as escadas de mármore, enquanto no interior
do palacete retiniam campainhas elétricas.
— Preciso sentir vendo os outros sentir, fez mirando-se no alto espelho do vestiário. Só
assim tenho emoções. Garanto-te que o Osvaldo acaba como o chinês de Macau, mas por outro
meio —com a morfina talvez. Só os chineses morrem às cabeçadas por sentir demais!
E fomos jantar tranquilamente na sua mesa florida de cravos e anêmonas brancas.
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Projeto Renascimento
Seleção por Lucas Alves Serjento
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