Partida - Lucas Alves Serjento



Duas pessoas. Um homem e uma mulher em um quarto de hospital. Ela está deitada, ele está sentado junto à cama. A mulher está dormindo, finalmente. Em seu nariz e braço estão presos fios que a alimentam e medicam. Ela não levanta mais para ir ao banheiro ou para se alimentar porque não consegue. A doença que a corrói há tanto tempo agora começa a comemorar a vitória sobre a persistência de uma mulher forte. Agora que ela não passa de uma mulher frágil desacordada sobre a cama, a doença comemora, dança, exibe os sinais de desgaste em seu rosto, a fraqueza na finura de seus braços, as olheiras em seus olhos.
Ao lado dela o homem desperta. Dormiram juntos, pois ele se recusou a adormecer enquanto ela continuasse acordada, apesar dos seus pedidos. As olheiras nos olhos dele são ainda mais profundas que as dela, pois ele não consegue e não quer dormir enquanto ela continuar assim. Ele sabe que o tempo dela está chegando. Talvez chegue em algumas horas, talvez já tenha passado. Ele a olha desesperado, checa o pulso na mão que está presa à sua em um aperto gentil sobre a cama. Com os olhos bem abertos ele espera um segundo e antes mesmo que consiga sentir a pulsação um bip da máquina ao lado da cama chama sua atenção e ele relaxa. Dormindo ela sorri, como se adivinhasse a distração. Ele não consegue conter o próprio sorriso, por mais triste que fosse a situação. Tímido, acaricia a mão dela, passa os dedos pelos ombros da mulher, toca os lábios de leve, tomando cuidado para não acordar. Tudo sem mover a outra mão, agarrada à dela.
Que fazer nesse tempo que lhes resta? Não podem sair do hospital, isso é claro. Ambos aceitaram não poder fazer nada além de esperar ali mesmo. Então como ele poderia fazê-la feliz? Seu olhar permanecia preso ao sorriso no rosto dela. Ele maquinava, mas não conseguia imaginar nada. Sentia-se fraco, insuficiente para aquela mulher. Queria trazê-la o mundo, dar-lhe o melhor, fazer algo coisa que ninguém nunca pensou antes. Ao invés disso, tudo o que conseguiu pensar era em lhe dar as flores que estavam ao lado da cama.
O coração dele apertava enquanto a olhava. Ele pensava em quanto tempo teriam. Horas? Dias? Quanto tempo mais ele poderia olhar para o rosto dela, ficar com ela, conversar com ela? Por um instante, assustado com o pouco tempo que deveriam ter, quase ele a acorda, suspendendo o gesto apenas ao lembrar a dificuldade que ela teve para dormir em meio aos vômitos, enjôos e dores. Porque ela? Porque não ele? Porque o destino tinha de ser assim, tão arbitrário? Logo a mulher da vida dele, logo a mulher mais maravilhosa do mundo? Levasse outras pessoas, aquelas que fazem mal aos outros, as que enganam, que prometem e não cumprem. Não ela, não a sua amada. O mundo era tão injusto, tudo era tão errado…
Mais uma vez ele sente a indignação com o destino, que lhe tirara tanto. Assim como em quase sempre, o que lhe refreou os nervos foi a expressão dela. Um giro na cama para melhorar a posição e ela detinha-lhe toda a atenção novamente. Ele esquece o destino, esquece a tristeza. Permanece ali, todo dela, todo para ela. Seus olhos presos naquela face inconfundível estão ansiosos por qualquer outra reação. Ela responde trazendo a mão presa à do marido até o rosto, encostando-a à bochecha e sorrindo ao balançar o corpo uma última vez antes de dormir.
O peito racha e ele quer chorar. Quer gritar. Sair correndo e fazer uma besteira qualquer. Raiva, tristeza, indignação, tudo forma uma massa negra dentro de seu peito e ele não sabe o que fazer com ela. Sua expressão vacila entre raiva e tristeza, alternando entre um e outro e parando apenas para esboçar sorriso a qualquer sinal de que ela irá despertar.
Ele se lembra dela e dele juntos, da vida em casal. Lembra apenas dos momentos bons, de como eles se conheceram, como se entendiam, como sabiam o que o outro estava pensando sem necessitar de qualquer palavra ou gesto. Lembra de como ela gostava de andar ao ar livre e ler livros de romance. Lembra como ela costumava olhar para ele quando estava chateada e precisava de ajuda para se livrar de alguém inconveniente em algum lugar. Lembra de como ela era tímida e nunca oferecia um beijo, mas que sempre lhe tocava o ombro com as pontas dos dedos quando queria um. Lembra como aquela mulher era boa apostadora e sempre ganhou em jogos de carta, mas que, em compensação, quando saía da mesa e tentava pegar um controle de videogame era uma tristeza. Lembra que ela gostava de arte, tinha desses gostos sutis, com traços finos escondidos na simplicidade. Ela amava música clássica, mas tinha vergonha de admitir por motivos que ele desconhecia. Ela tinha um cuidado com os cabelos que deixaria qualquer um nervoso de tanto esperar, quem dirá o seu marido, que precisava esperar mais de vinte minutos todos os dias porque um fio não estava do seu agrado. Ela sempre amou pássaros, mas nunca trancou nenhum em casa, dizia que a liberdade deles valia mais que o seu bem estar. Deixava então na varanda um pouco de ração e um bebedouro, que atraía vários deles todos os dias. Ele gostava de vê-la às vezes tentando brincar com um ou outro menos assustado e que aceitava o toque da mão carinhosa. Como podia uma mulher assim existir e escolher a ele? Como pôde o destino retirá-la do seu lado quando já estava em sua vida? Ele quer chorar. Talvez essa seja a resposta. Não adianta sentir raiva com nada nem ninguém, porque não muda coisa alguma. Talvez chorar? Ele não consegue sustentar a própria tese nascente momentos antes. Porque já sabe a resposta certa há vários dias. Não são manifestações escandalosas do seus desespero. O que ele precisa é continuar ao seu lado. Ficar ali, acordado enquanto pode. De férias do serviço para continuar por quanto tempo for necessário. "Não se preocupe" pensa ele. "Eu vou continuar aqui."
-Já acordado? - A voz dela é fraca, não porque acabou de despertar, mas porque não tem forças para falar mais alto.
-Faz pouco tempo. - Mentira. Deve ter passado mais de uma hora. Mas não tem importância. Não fará diferença.
Ela o olha e continua sorrindo. Ele quer mergulhar naqueles olhos, ficar ali, olhando para ela, tendo-a ao seu lado. O instinto diz que talvez seja melhor falar alguma coisa, mas seus lábios continuam fechados. Ela permanece como está, olhando para ele. Ambos sabem que nada precisa ser dito, que tudo o que poderiam dizer já está sendo representado no olhar. E ele, embebido na alegria do momento e de tê-la ali, esquece que vão se separar em breve. Que seu tempo juntos está acabando. Agora são apenas um homem e uma mulher. Não importa onde estão ou porque estão.
-Eu te amo. - as palavras fogem dos lábios, saltam da boca. Talvez as únicas que ainda valessem a pena pronunciar.
-Eu te amo. - a resposta é doce. Agora o tom é baixo e proposital.
A mulher toca o ombro do homem e o encara. Ele sorri e inclina o corpo à frente.
Um homem e uma mulher que se amam e se beijam. Talvez o último beijo.

Um homem e uma mulher permanecem unidos num quarto de hospital.

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